sexta-feira, 24 de maio de 2019

Luzes




Apreciei a esperança refletida nas luzes quentes da loja de brinquedo que iluminavam a rua e os passantes com sua promessa de felicidade. Eu estava observando o ponto de ônibus pela janela da confeitaria e havia chovido. Os coletivos resfriavam com a sua luz fluorescente os respingos da chuva nos carros. Amarelo e azul. Hipnotizada indaguei, por onde você devia estar. - Será que posso te chamar ao celular por um instante? Vou te dizer que parti, não habito mais aquele lugar.

Desmanchei-me em memórias lendo as grafias melosas dos meus derradeiros escritos no caderno amassado de uso. Sempre as mesmas constatações, tudo tão igual. Ao longe toca a sineta do telefone fixo da loja de comer. Por que contamos o avanço do tempo pelas novidades tecnológicas? Herança dos sonhadores do sèculo XX, só pode. O por vir automatizado e artificial, isso era o futuro. Caligrafia é um desenho passional, a alma comunicando nas curvas das letras. Se lesses meu caderno, eu me faria entender? Caneta, papel, pauta, desenhos e letra. Memorial atemporal, registro e quimera. É possível sonhar o passado?

Gostaria de entender como as lembranças surgem... Acabei de recordar, eu caminhando num final de tarde sozinha, pelas casas geminadas da asa norte, cidade planejada, categorizada por números e letras, SHCGN, setor habitacional geminado norte 709/710. Para chegar até ali, tinha atravessado um pequeno corredor que separava dois blocos dessas casas, os pequenos gramados ao redor delas eram cercados por arbustos de folhas bem verdes e arredondadas, de onde nasciam flores brancas e cheirosas como dama da noite, criando um ambiente perfumado e romântico, diferindo das outras cercas de cipreste fedido e espinhento. Garota esperava o dia em que eu iria amar e acompanhada passaria por ali sob a lua cheia iluminando o amor e o caminho, crescida numa mais voltei por lá. Nesse dia, atravessei o caminho sem divagar e determinada cheguei até o limite da quadra onde havia o que poderia ser chamado de pequeno bosque com enormes árvores frutíferas nascidas em espaços de terra retangulares e delimitados por calçadas de concreto que ficavam cobertas de seus frutos. Brasília, anos 80, final do dia, não havia alma viva ao redor, casas modernas que pareciam habitadas por ninguém, ruas asfaltadas sem carros, janelas sem pessoas, parquinhos sem crianças. Enormes amendoeiras que davam um fruto que curiosamente chamávamos de coquinho e também árvores imensas de jamelão, uma fruta parente da jabuticaba com formato de berinjela, a pior fruta desta espécie nascia naquele quadrado de terra entre as calçadas de concreto, um gosto amargo de perfume ruim, nem mesmo a mais ousada das crianças conseguia comê-los e o chão ficava tingido de roxo do seu sumo e o ar adocicado de decomposição. Os coquinhos também não eram saborosos, tinham gosto de coco passado, por isso a alcunha, mas nos sentávamos em bandos debaixo de sua sombra roendo sua polpa fibrosa.

Neste dia, caminhei sozinha, atravessei amarga o cantinho dos namorados até esse local e olhei para mim sentada num café escrevendo essa memória. Até hoje eu não sabia o que tinha ido procurar por ali e agora sei que vim me contar um segredo. Pare e escute, velha monstrenga, seja lá o que isso significa, a vida vai ser difícil até aí? O se vai, pequena solitária, mas você sempre pode escolher diferente até chegar aqui. Este é o segredo que você me contou e estou recontando a você, nunca se esqueça de esquecer como foi que você fez. 

- Alô… Oi, cê tá muito ocupado pra mim? 

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